Passei o domingo esparramada na cama, crianças visitando a vovó e eu lá deitada com livros, séries, filmes, internet e meus próprios pensamentos. Não sei como eu comecei a sessão nostalgia, mas sei que ela me invadiu com pensamentos guardados muito profundamente, numa caixinha instável, que suporta muito mais do que é capaz e estava escondida no porão do de dentro, trancada e lacrada. Acho que talvez tenha sido por conta da ligação da Keka, perguntando se eu havia trocado meu nome quando do meu casamento, ela estava fazendo a lista dos convites do casamento dela com o Greg e precisava anotar. E aí, veio assim, as lembranças de quando começamos a namorar, da companhia deles dois, das nossas noites de sexta sempre no Picanha à moda. Veio a lembrança da certeza do sentimento que nos unia, da força e do turvamento que ele causava. Veio a sensação de segurança que ele insistia em me passar, da confiança que ele queria que eu tivesse, e eu, marcada e traumatizada por um relacionamento doentio anterior, não conseguia ter. Como eu era boba! Eu já sabia que ele seria a pessoa da minha vida, mas eu não sabia como segurar a onda. Eu via o cara bacana que ele era, o filho amoroso, o estudante exemplar, eu ouvia histórias de aluninhas suspirando por ele e de colegas de escola que paravam para vê-lo passar (quem não ia querer um cara como ele?) e aquilo me doía como se eu estivesse sempre com a faca no pescoço. Demorou tanto para eu entender que ele estava na minha, demorou tanto para eu me sentir tranquila, que eu nem sei bem como fomos capazes de superar tanto ciúme. Lembro bem de como a gente se demorava em incontáveis ligações noturnas e do quanto a gente gostava de escrever cartas, mensagens, emails. Cada data, cada dia, centenas de palavras amorosas cercavam a nossa história e eu me comovia e choraaaaava. Eram as palavras as nossas principais demonstrações de amor. Lembro da tranquilidade, da sensação de paz, do conforto que estar com ele me causava, lembro da vontade de estar sempre perto, mais perto, cada vez mais. Lembro de como era dolorido ter que se despedir e o quanto comemoramos quando fomos morar juntos, porque finalmente a gente não tinha mais que dormir separado, ele não tinha mais que me deixar em casa e seguir sozinho para casa dele, agora era nossa a casa. Eu tenho saudades de mil e uma coisas. Eu tenho saudade da curva do ombro, dos sinais no pescoço, da boca carnuda, do jeito carinhoso com que me chamava de princesinha desde todo sempre. Eu tenho saudade principalmente de estar ao lado, com aquela mão enorme, com dedos de salsicha - como diria o Saboia; segurando a minha. Eu tenho saudade do cafuné no meu cabelo antes de dormir e das conversas que a gente tinha, eu na cama e ele tomando banho no banheiro. Saudade da confiança mútua, do respeito, da admiração, do orgulho, da sensação de pertencimento, de ler o olhar, de entender antes que qualquer coisa seja dita, do conforto, da amizade, dos conselhos, dos planos que eram nossos e era tudo completamente recíproco. Lembro da mania de achar que tudo tinha jeito e do meu jeito desesperado de pensar que tudo vai dar errado. Lembro de como eu ficava tensa, exaltada, nervosa em muitos dias e ele abria os braços, dizendo: "Vai me engolir?". Lembro da chave girando na porta e de esperar sempre pela saudação dele, em alto e bom som, como aquele bom humor que, às vezes, me irritava. Lembro de brigar com ele porque ele não conseguia dizer não para as pessoas, para ninguém. Lembro das noites em que ele saía para o plantão e deixava o Matheus tomando conta de mim e do irmãozinho bebê, dizendo que ele era agora o homem da casa. Reflito sobre essas recomendações até hoje e acho que ela reverbera na mente do meu pequeno grandão, porque é perceptível o cuidado que ele tem comigo e com o Thomás. Lembro das ligações que ele me fazia do plantão, das conversas que tínhamos na noite em que ele não dormia em casa, e no quanto eu ficava feliz e relaxada por conseguir ficar deitada na cama assistindo TV, depois do fim de semana inteiro correndo com o marido hiperativo e pinguço para almoços, praias, bares, festas. Ele me ensinou muitas coisas e me cobrava muito também, que eu fosse uma dona de casa melhor, que eu fosse mais atenta, mais disciplinada, mas ele tinha uma admiração incrível pela pessoa que eu era, em todos os aspectos, e nunca deixou de repetir que eu me tornara a mulher que ele queria para a vida toda. A gente tinha um amor muito óbvio e bem inevitável, do tipo que virou o mundo, superou o tempo, o espaço, a distância e outras pessoas que até chegaram a fazer cosquinhas no nosso coração e se realizou, se expandiu quando as crianças nasceram. Para mim, mesmo no meio dos momentos difíceis porque passamos, era muito óbvio que tudo valia a pena porque existia esse AMOR, assim mesmo, em caixa alta. E, por ele, eu fui capaz de perdoar, de esquecer, de superar e, por causa dele, amadurecer. A vida ficou muito vazia e o meu mundo muito silencioso depois que ele se foi. No começo, era como se tudo em mim estivesse em carne viva e respirar doía, falar doía, pensar doía, viver doía demais. Ser feliz parecia uma coisa sem sentido algum, sem razão, sem porquê. O mundo não parou pra me ver tombar, o mundo não anunciou a minha história trágica no jornal, não recebi atendimento prioritário em lugar nenhum porque a dor que eu carregava me dobrava os joelhos, parecia que ninguém entendia que haviam extirpado meu coração, que eu estava sangrando, que eu estava esvaindo dentro de mim. Sentia como se tudo fosse ficar para sempre em preto em branco sem ele por perto. Sentia que eu nunca conseguiria me por em pé, respirar profundo, sorrir com vontade, sentir borboletas, amar de novo. Sentia que aquela perda definiria minha existência inteira e esta seria triste, arrastada, pesada, amarga até. Mas o tempo passou e mesmo não tendo esquecido nada disso tudo que eu vivi, mesmo doendo no peito ter perdido esse homem, eu percebo que eu posso ser plenamente feliz de novo, que aquela história teve um final trágico e muito triste, sim. Mas eu não quero viver despedaçada, eu não quero mais ser caquinhos, farelos, migalhas de uma pessoa que amou com tudo, profundamente. Eu quero viver de novo. E dentro de mim eu sinto que ele também ficaria feliz com a minha felicidade, mesmo que isso implique em outro alguém. Eu tenho saudades de tudo, ainda sim, sempre. E constato que esse amor venceu. Venceu, vencemos. E eu acabo de descobrir, simples assim, que eu nem quero me livrar desse sentimento, que quero conviver com ele, eu quero que ele se encaixe e tome assento, que caiba aqui dentro de mim, tenho que enfim parar de querer ganhar dele, parar de querer extingui-lo. Porque ele não se foi quando nos separamos, ele não se foi nas inúmeras dificuldades por que passamos e ele não irá agora. Ele é incrivelmente resistente e sobrevive. É isso: eu ainda amo, talvez para sempre. Mas não é por isso que eu vou deixar de ser feliz e de viver minha vida e de aproveitar as cosquinhas no meu coração. Não quero ser paralizada por esse amor, quero que ele me impulsione, que ele me recubra da sensação de que eu mereço muito mais ainda ser amada, ser inteira, tentar de novo. Amo ainda, é fato. Sem pressa, como se só saber que esse amor existe já me bastasse. Sabe, não é um sentimento egoísta, muito menos possessivo, nem depressivo, nem desesperado. Não é mais um sentimento que me deixa de joelhos, dobrada, envergada de dor, sem ar, sem esperança, sem conseguir respirar.
É apenas uma saudadezinha. Gostosa, tranqüila, bonita, saudável, de longe. E, quem diria: leve!