sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Sobre o luto

METADE

Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.


Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada

Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.


Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece

e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas

Como a única coisa que resta a um homem
inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.


Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso

mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste,
e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.


Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.


Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção.


E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.
(Oswaldo Montenegro)

Ser derrubada pelo vendaval de se perder quem se ama, gera uma série de sentimentos contraditórios e intensos na gente. Sem dúvida nenhuma, no meu processamento da dor, o medo foi o principal deles, o mais presente, o mais constante. Medo de não conseguir fazer tudo sozinha, de não dar conta, de não conseguir criar meus filhos, de não conseguir manter um padrão mínimo razoável de vida, de não encontrar mais ninguém, de ficar sozinha para sempre, de deprimir... Medo de carro, de trânsito, de tráfego, de estrada... Medo de morrer e deixar meus filhos órfãos, medo da burocracia, das contas, das dívidas... Medo, medo, medo. E, no meio do caos, foi preciso redescobrir aquilo que eu buscava, os meus próprios valores, o meu caminho. A morte de parte do que eu tinha, não só do meu amor, mas também de grande parte da minha vida, dos meus sonhos, dos meus projetos, dos meus planos, do meu futuro; não me fez calar. Pelo contrário, me fez falar e escrever, escrever, escrever... Mas grande parte do que me dói agora dói em silêncio, só de vezenquando essa dor dá seus gritos.

Ainda sou capaz de ouvir a música da minha vida tocando e, embora tenha sido este um momento, um ano inteiro, muito triste, eu consegui dançar no ritmo que me foi imposto. Esse amor que me acompanhou, me transformou, me tornou o que eu sou não pode simplesmente deixar de existir. Ele persiste amando o meu Thi, ainda que ele não esteja mais aqui. Porque a gente não se acostuma nunca com a partida nem com a saudade. E o amor que nos uniu transcende a matéria. É um amor pelo que ele é. E o que ele é ainda existe em mim e nos pequenos.

A pessoa que me tornei depois disso não é nada além, não é mártir, não é perfeita, nem mais forte, nem mais guerreira que ninguém. A pessoa que me tornei depois disso tudo é apenas o cômputo final de perdas e ganhos, partidas e descobertas. A pessoa que me tornei depois de tudo isso é apenas o que dá pra ser. Não sou modelo, exemplo, paradigma. Nada do que eu faço e sou serve para mais alguém, que não eu mesma. E é preciso respeitar minhas decisões e atitudes, porque eu me agarrro àquilo que me resta e conheço minhas limitações. Antes de cada decisão, muitas vezes eu escuto os outros; muitas vezes eu decido no instinto e em silêncio.

Em alguns momentos, sumir, desaparecer e morrer pareceram-me boas opções. A vontade de ir embora daqui, do olho do furacão, reverberou em mim de maneira estrondosa. E, vezenquando, dá ainda o ar da graça. Que essa ansiedade, essa tensão, esse medo do mundo, essa sensação de perdida e de vazio sejam recompensadas com um futuro na calma e na paz que eu mereço. Porque não é certo viver para sempre em bipolaridade. Não quero, depois de tanto fundo no poço, uma vida de elocubrações e explosões, de racionalidade e de lágrimas. Eu quero paz e sorrisos, nada mais, nada menos.

É inevitável o medo de ficar sozinho, de não dividir com mais ninguém, de não ter companhia na vida. E conviver consigo mesmo depois de tanto tempo como casal é realmente uma experiência dolorosa. É preciso recuperar a auto-estima. É preciso reconhecer que a felicidade está dentro de si. É preciso enxergar o mundo ao redor, a vida e as pessoas com olhos de esperança e manter o coração aberto como quando se é criança, sem estampar as cicatrizes para que eles não sejam magoadas. Não se deve esquecer o que se foi, o que se perdeu, nem todas as lembranças. Viver o luto é como reabilitação de viciado. Um dia de cada vez. Baby steps. Não saber o que sobrou depois que metade de si foi arrancada é, sim, perfeitamente normal.

E como viciado em recuperação, é preciso reconhecer e desfrutar das pequenas alegrias que surjem no meio do pior pesadelo que se tornou real. Amigos verdadeiros, risadinhas de bebês, viagens inesquecíveis, uma cosquinha no coração... E que esses pequenos alentos aquietem a alma e afugentem a amargura. É preciso segurar firme neles para emergir do afogamento. Só eles devolvem um pouco do fôlego para continuar remando. A memória da força e da segurança de quando éramos mais de um serve de abrigo para aqueles que restaram e sobrevivem na ausência, na falta e na dor. E que o cansaço, inevitável, seja superado a cada novo amanhecer.

Não há nada que dê uma resposta aceitável, plausível. Nem arte nem religião. Nem ciência nem fé. Nem experiência nem desígnio. Não há nada que faça a sensação de revolta, de que puxaram seu tapete, de que o mundo está de cabeça pra baixo, sair de dentro. Mas não procurar respostas e motivos é a maneira mais fácil de lidar com isso. É só seguir a despeito de tudo. E fazer tudo algumas vezes como expectador de si mesmo, como se fosse a história de uma outra pessoa, com o distanciamento de quem assiste; em outras, como artista, como ator, como cantor do próprio destino.

E se, em alguns momentos a sanidade, a coerência, a razoabilidade e o equilíbrio sumirem, que haja perdão, porque tudo que nos resta, depois de encarar a morte de frente, é o amor por aquela pessoa que não mais está.

* Este texto me surgiu depois da leitura do blog "As perdas e o luto", cuja autora publicou essa música do Oswaldo Montenegro ontem e disse que achava que parecia a descrição da viuvez.

3 comentários:

Mirys Segalla disse...

Cele:

No começo do teu texto, eu ia mesmo dizer que você tinha lido a Lú (as perdas e o luto). Depois, continuando, achei que tinha se inspirado na nossa conversa...

No fim, vi que era um compilado de tudo, de você juntando ingredientes, outra vez, ingredientes que todos conhecemos, e os transformando em algo delicioso e só seu!

Amore, a melhor parte de se chegar no fundo do poço (como chegamos, nesse ano) é saber que "pra baixo, não vai mais!!!". Agora, é só "ladeira acima"!!!!

Bjos e bençãos, pra você e pros pequenos.

Mirys - www.diariodos3mosqueteiros.blogspot.com

Juliana disse...

Eu conheci seu blog faz um tempo, mas só agora li tudo. Achava os posts muito interessantes ,mas não tinha procurado saber o porquê do tom de luto. Lendo tudo , compreendi,né?

Olha ,Marcele, chorei um monte aqui. E ao terminar de ler todos os posts, fico com sentimento de admiração por você; admiração por sua força, honestidade, determinação, integridade.

Realmente, não tenho muito o que dizer sobre tudo o que li. Não sei dimensionar a dor que vc sentiu e sente. Só queria dizer que é bonito de ver tanta força e sinceridade.

Sem ler o blog todo, eu já tinha mostrado seu texto sobre o do 2 de novembro prum monte de gente. Agora faz todo sentido.

Olhe, nem sei se comentários te incomodam, te chateiam,sei lá ! Mas eu só queria mesmo dizer que fiquei muito emocionada com seu blog.

um beijo enorme

Cele disse...

Mirys,

Você já é uma grande amiga! Obrigada por dividir essa dor, pela troca de emails e de experiências. Eu fico mais tranquila pq tem gente que pensa e reage como eu!

Juliana,

Os comentários nunca incomodam, nunca chateiam. Pelo contrário. Obrigada pelos elogios ao blog, à escrita e a mim. Eu digo sempre que sou o que dá pra ser...

Beijos!