terça-feira, 3 de agosto de 2010

Reconhecimento

"Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
que muitas filhas te deu, casou donzela
e à noite se prepara e se advinha
objeto de amor, atenta e bela.

Aflição de não ser a grande ilha
que te retém e não te desespera
(A noite como fera se avizinha)

Aflição de ser água em meio à terra
e ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel

não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra."

(Hilda Hilst)

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"Sou uma mulher e só posso escrever. Afinal, talvez seja oportuna a tua ausência. Porque eu, de outro modo, nunca te poderia alcançar. Deixei de ter posse da minha própria voz. Se viesses agora, eu ficaria sem fala. A minha voz emigrou para um corpo que já foi meu. E quando me escuto nem eu mesma me reconheço. Em assunto de amor só posso escrever. Não é de agora, sempre foi assim, mesmo quando estavas presente.

E escrevo como as aves redigem seu voo: sem papel, sem caligrafia, apenas com luz e saudade. Palavras que, sendo minhas, não moraram nunca em mim. Escrevo sem ter nada que dizer. Porque não sei o que te dizer do que fomos. E nada tenho para te dizer do que seremos. Porque sou como os habitantes de Jerusalém. Não tenho saudade, não tenho memória. É assim que envelheço: evaporada em mim, véu esquecido num banco de igreja.

Só te amei a ti. Essa fidelidade levou-me ao mais penoso dos exílios: esse amor afastou-me da possibilidade de amar. Agora, entre todos os nomes, só me resta o teu nome. Só a ele posso pedir o que antes te pedia a ti: que me faça nascer. Porque eu preciso tanto de nascer! De nascer outra, longe de mim, longe do meu tempo. Estou exausta. Exausta, mas não vazia. Para estar vazia é preciso ter dentro. E eu perdi a minha interioridade.

Vês como fico pequena quando escrevo para ti? É por isso que nunca poderia ser poeta. O poeta se engrandece perante a ausência, como se a ausência fosse seu altar, e ele ficasse maior que a palavra. No meu caso, não, a ausência me deixa submersa, sem acesso a mim."

(Mia Couto - Antes de nascer o mundo. P. 131-132 - Com cortes e marcações meus)

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