O que é difícil entender é que para quem falta tudo, qualquer coisa é muita coisa. Se não se tem nada; o que parece sobra, resto, pouco é muito, é ótimo, é tudo. Quando se está no deserto, na rua, sem teto, sem abrigo; qualquer sombra, qualquer pé de pau, qualquer barraco vira lar, qualquer jornal vira lençol, qualquer caixa de sapato vira travesseiro. E é muito fácil para aqueles que estão dentro das suas casas, com seus pratos de comidas, com suas roupas quentinhas, com todo seu conforto, achar absurdo que ali, naquela caixa de papelão, naquele beco, embaixo do viaduto, estejam toda a vida e todos os sonhos de uma pessoa. Mas é o que disse: quando não se tem nada, o pouco é muito.
A melhor característica do ser humano, a que nos tornou seres evoluídos e selecionados, é justamente a facilidade de adaptação. A gente se adapta, a gente se acostuma. É fácil se acostumar com o que a vida tem de bom, com luxo, com facilidades, com praticidades... Mas quando tudo, absolutamente tudo, é tomado; a capacidade de adaptação permanece e até impressiona. É triste, é pesado, é vazio, é difícil; mas a gente se acostuma e sobrevive com menos, com muito menos, com quase nada.
E volto a dizer: para quem tem quase nada, qualquer oferta é ganhar na loteria. Vem aquela sensação de que é preciso agradecer por isso, que pode ser a única oportunidade, a única refeição do dia, o único conforto, a única vez. Vem também a impressão de que é preciso desfrutar daquilo intensamente, cada colherada, cada pedacinho, cada vez, lenta e profundamente. Vem junto um desejo de que dure, de que seja eterno, de que a vida dê um pause. Vem um anseio para que não acabe, porque voltar para o nada é penoso demais.
Quem não tem quase nada se refestela com muito pouco e abre a guarda e se entrega aos pequenos momentos como se fossem únicos, porque eles bem podem ser. Quem não tem quase nada se acostuma com o pouco que tem e se deslumbra com qualquer coisa. Quem não tem quase nada se entrega muito mais facilmente; é ludibriado mais facilmente; é atropelado por tudo muito mais facilmente; perde mais facilmente; deixa escapar entre os dedos porque apertou com muita força e apertou com muita força porque queria reter o momento.
Nessa altura do campeonato, já deu para perceber que eu não estou falando dos flagelados, descamisados, moradores de rua, né? Vocifero com Cazuza: "Migalhas dormidas do teu pão... Raspas e restos me interessam. Pequenas porções de ilusão... Mentiras sinceras me interessam, ME INTERESSAM!"
Um comentário:
"(...) Se não gostar de ler, como vai gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto, mas alimente-se. Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta (...)Escrever - e você sabe disso - pode eliminar essa sensação de gratuidade no existir, de coisas o tempo todo fugindo e se transformando em passado. Eu acho então que se escrever te dá um sentido para estar viva (ou a ilusão de um sentido, que importa?), então vai e escreve e diz tudo e rasga o coração, as vísceras, expõe tudo, grita, esperneia - no papel(...)Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora."
Caio Fernando Abreu
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